Por que ninguém consegue prever a curva da COVID-19?


Em momentos históricos, como este da pandemia do coronavírus, especialistas em nada explicam tudo no infinito da internet. Do dia para a noite, eles se tornaram infectologistas, epidemiologistas e estatísticos. E muitos comentaristas políticos – com suas estantes repletas de livros ao fundo, nenhum sobre infectologia ou estatística – viraram os três.  

Entre todos os aspectos debatidos sobre a pandemia, um se destaca, seja pela sua importância em guiar ações de combate ao vírus, ou pela obsessão em prever o futuro: a projeção da curva da COVID-19 e de seu pico. 

A cada tentativa frustrada de projetar o pico da doença logo aparece outra projeção, na semana seguinte mais outra, e depois mais outra. E embora ninguém tenha acertado, muita gente tem usado essas projeções para defender suas teses a ferro e fogo. A projeções erradas até viraram meme na internet. 

Sem dúvida, muitas destas projeções são sérias e nobres, mas com os dados à disposição até o momento, projetar a curva permanece uma tarefa de Sísifo. Diferentemente de projeções que organizações costumam fazer, por exemplo, sobre vendas, custos, taxa de câmbio, desemprego e PIB, que já contam com anos de dados observados, prever a trajetória do coronavírus é algo completamente diferente. E o cerne do problema são os dados, enviesado pelas subnotificações e por outros fatores. 

Testes em massa e protocolos

O Brasil é um dos países que menos tem testado sua população e quando testa, milhares de amostras se acumulam em laboratórios aguardando análise, atrasando resultados em semanas. Esse gargalo gera dois grandes problemas: o primeiro é o risco dos pacientes suspeitos infectarem outras pessoas até o resultado sair; e o segundo, são as quebras de protocolos. Amostras para testes laboratoriais devem ser analisadas em até 72 horas após a coleta para gerar um resultado confiável, algo que não está acontecendo. Além disso, com centros de testagem sobrecarregados, há o risco de amostras serem contaminadas no manuseio, comprometendo sua confiabilidade.  

Os testes também não são aleatórios, visto que a prioridade é encaminhar casos confirmados para tratamento nos limitados leitos de UTI, e não criar uma base de dados mais completa para análise estatística. E falando em falta de aleatoriedade, o Governo Federal já anunciou que os lotes mais recentes de kits de testes importados serão reservados, prioritariamente, para profissionais de saúde, um contingente de meio milhão de pessoas em todo o país, que está, em grande parte, mais sujeito à contaminação do que a pessoa média (outra fonte de viés para efeito de análise de dados).

Para tornar o desafio ainda maior, é importante lembrar que há diferentes tipos de teste sendo aplicados no Brasil: os testes laboratoriais (como o PCR), com alto grau de precisão; e o teste rápido, cuja eficácia varia de acordo com o número de dias em que uma pessoa está infectada. A maioria dos 33 testes aprovados pela Anvisa até o momento são testes rápidos. 

Avaliações de um teste rápido desenvolvido na China, maior produtora, conduzidas no Laboratório de Virologia Molecular da Universidade Federal do Rio de Janeiro, teve os seguintes resultados:

√ 12% de eficácia entre os pacientes que estavam com 1 a 5 dias de sintoma;

√ 29% de eficácia entre os pacientes no grupo entre 6 e 10 dias;

√ 75% de eficácia entre pacientes no grupo entre 11 e 15 dias;

√ 100% de eficácia entre pacientes apresentando sintomas após 16º dia.

Ou seja, pessoas que testam negativo hoje, podem estar infectadas, resultando em mais subnotificações e mais pessoas disseminando a doença. Há também testes rápidos chineses sendo vendidos sem a devida homologação no país de origem, apresentando 30% de sensibilidade, quando esse índice deveria ser de 80%.

E como se isso tudo já não bastasse, há os pacientes assintomáticos, que são um importante vetor da doença, dificultando a produção de projeções menos imprecisas. 

A COVID-19 se espalha em ritmos diferentes pelo mundo.

Comparar a curva da doença no Brasil com a de outros países é sempre interessante, mas vale lembrar suas limitações, como diferenças de hábitos e culturas. Os brasileiros têm o hábito de se tocar muito mais nas interações sociais do que os asiáticos. Por sua vez, países asiáticos têm uma cultura consolidada no uso máscaras, ao contrário do Brasil. Há também fatores demográficos. No Brasil, há muito mais cidades grandes, com alta densidade populacional (favorecendo o contágio) do que na Europa, por exemplo. Sem contar que medidas como lockdown e isolamento social (e adesão às mesmas), cujo intuito é reduzir ou, pelo menos, retardar o contágio, varia muito em diferentes regiões do mundo. A própria China acaba de retificar o número de vítimas fatais em Wuhan, com um acréscimo de impressionantes 50%! Muita cautela, portanto, ao utilizar dados de outros países para prever a evolução da doença por aqui. 

A batalha dos números continua

É certo que, a cada nova tentativa de criar-se um modelo preditivo sobre a COVID-19, os dados e técnicas são revisados para compensar falhas e corrigir distorções. Não importa o método, o cuidado, ou experiência de quem está fazendo a projeção, a tarefa continua inglória, mas fundamental para guiar decisões de combate ao vírus, assim como para definir o melhor momento para a tão vital reabertura do comércio. 

É importante também destacar que uma abordagem multidisciplinar na construção das projeções, envolvendo, além de estatísticos cientistas de dados, infectologistas, epidemiologistas, administradores hospitalares, entre outros especialistas em saúde, tende a gerar projeções melhores. Em um momento de incertezas como este, é sempre melhor ter uma vaga noção do que vai acontecer a ficar no escuro – mas com os dados que estão aí, é importante consultar as projeções levando em conta suas limitações, nunca como uma verdade absoluta, como muitos “especialistas” andam fazendo. 

1 responses on "Por que ninguém consegue prever a curva da COVID-19?"

  1. renato romualdo at Responder

    Excelente Bruce.

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